Pequenos milagres de um santo

O termo milagre geralmente é usado para feitos impossíveis de grande magnitude. Por mais que o significado principal seja usado comumente pelas pessoas apenas para reversão de situações impossíveis, também vejo a palavra “milagre” por óticas diferentes. Vejo milagres de menor escala na esfera cotidiana, como uma mãe que tem dois trabalhos e ainda consegue arrumar tempo para brincar com seus filhos ou alguma pessoa que te ajuda em um momento de dificuldade sem pedir nada em troca, para citar alguns exemplos. Coisas imperceptíveis, que você não chamaria de milagre, mas que ao final do dia são gratificantes e fazem a diferença para uma pessoa.

Um de nossos maiores ídolos (para mim, o maior de todos), São Marcos, ficou amplamente conhecido pelos milagres de grande expressão que operou dentro de campo. Ganhou a alcunha de santo com todos os méritos possíveis, mas a imagem e semelhança são a de um ser humano. Um homem simples, que deixa as pessoas próximas alegres com seu jeito engraçado, sua lealdade, com caráter ímpar e humildade que poucos possuem. Mas também suscetível a falhas e com humores que variavam bastante dependendo do resultado – quem não se lembra das entrevistas intempestivas após uma derrota mais contundente?

Sim, ele é um homem que levou seus sentimentos para as quatro linhas. Riu, chorou, se emocionou, ficou nervoso, assustado e até desanimado. Qual outro veterano consagrado iria se sentir envergonhado como um jogador iniciante ao fazer um discurso de despedida de um estádio, sendo o atleta que mais atuou no local? Que outro goleiro surtaria aos 33 do segundo tempo de uma partida decisiva e partiria para o ataque de maneira quixotesca para tentar manter o time vivo na disputa de um título? Que cara que vestiria a camisa do Palmeiras no planalto em Brasília após vencer uma Copa do Mundo? Durante 20 anos ele sintetizou a palavra “palmeirense” como nenhum outro jogador foi ou será capaz de fazer.

Os pequenos milagres, aqueles que não saltam tanto à vista, também fizeram parte dessa semelhança humana que São Marcos possuía e podem até não serem muito lembrados, mas fizeram a diferença em algum momento de sua trajetória memorável de 532 partidas com a camisa alviverde.

Fiz questão de enumerar 12 (número de sua camisa) desses momentos que talvez não sejam tão vistosos ou lembrados, mas que foram especiais para mim e que tenho certeza que também alegrou o dia de algum outro palestrino espalhado pelo mundo, vamos a eles.

Palmeiras 3 x 1 Peñarol  - Libertadores 2000
O Palmeiras era o detentor do título da Libertadores e a caminhada pareceria mais árdua do que no ano anterior, já que metade do time havia saído ao final da temporada de 1999. Depois de passar com relativa tranquilidade pela fase de grupos – sobretudo nos jogos em casa – teríamos o forte Peñarol pelas oitavas de final.

Após perdermos o jogo de ida (2 x 0), em uma noite extremamente feliz para Alex e Marcelo Ramos,  vencemos o jogo de volta por 3 x 1 e a decisão foi para os pênaltis. Nos pênaltis, Marcos defendeu duas vezes e nossa classificação para as quartas ficou assegurada.

Quando falamos da Libertadores de 2000 esse jogo fica meio esquecido, mas se Marcos não realizasse pequenos milagres aqui, aquela grande defesa contra o Marcelinho talvez nunca acontecesse.

Palmeiras 2 x 2 Cruzeiro – Libertadores 2001
Pelo terceiro ano seguido, alcançamos as quartas de final da Libertadores. O adversário era o Cruzeiro de Felipão, Oseas e Cleber, vencedores pelo Palmeiras e o jogo da ida tinha sido o famoso 3 x 3 no Palestra Itália, com show particular do meia Lopes, que marcou os 3 gols palmeirenses da partida.

A decisão da vaga para as semifinais foi no Mineirão. O Cruzeiro se manteve na frente do placar por um bom tempo. Alex, que havia retornado para ser o craque do time no semestre, estava em uma noite completamente infeliz e errou um pênalti durante a partida, mas Arce, outro craque de linha remanescente, fez um cruzamento preciso na reta final da partida para o gol do zagueiro Alexandre (aquele, o rebaixador). 2 x 2 no final e pênaltis.

Nas cobranças, o Cruzeiro abriu a vantagem e esteve a poucos passos das semifinais, mas Marcos estava lá e defendeu 3 penaltis, levando-nos para mais uma semifinal de Libertadores.

Novamente, não é uma partida muito lembrada, especialmente se levarmos em consideração o roubo sofrido contra o Boca Juniors nas semifinais, mas a catarse proporcionada pelo santo goleiro nesse dia foi grande.

Palmeiras 1 x 1 São Paulo – Brasileiro de 2002
O desespero era gigantesco. Metade dos jogos da fase de classificação já tinham passado e o Palmeiras havia vencido apenas 2 jogos.

São Marcos já havia fechado a meta na partida anterior contra o Santos, na Vila Belmiro – empate, mas que poderia ser vitória caso o juiz validasse o gol de Zinho. Iriamos enfrentar o inimigo, líder do campeonato enquanto nós ocupávamos a lanterna. A imprensa dava a partida como favas contadas, mas sabemos que quando se trata de Palmeiras, não podem nos subestimar, por mais combalido que esteja nosso elenco.

E jogamos muito melhor que eles. Saímos na frente, eles empataram, mas a pressão era toda nossa, que esbarrava no nervosismo dos atacantes.

Porém, na melhor chance que o time do Jd. Leonor teve, São Marcos fez uma defesa à queima roupa que demonstrou toda a elasticidade inerente ao grande goleiro campeão do mundo. O jogo terminou empatado e continuávamos na lanterna, mas esse pequeno milagre deu um oxigênio extra para o time na luta contra o rebaixamento, que infelizmente se concretizou.

Era visível em seu semblante que ele era um dos únicos que realmente estavam abatidos com tudo o que acontecia.

Palmeiras 1 x 1 Ceará – Série B 2003
Este foi o jogo símbolo da Série B daquele ano: estádio acanhado, jogado em Sobral-CE, com gramado terrível e torcida local nervosa.

Em uma disputa muito mais difícil do que temos hoje em 2013, o Palmeiras havia assumido a liderança fazia pouco tempo e o medo de acontecer algo de errado era bem maior – tanto pela concorrência mais forte quanto pelo time mais fraco que possuíamos, sem contar o regulamento bem mais complicado, que envolviam quadrangulares e apenas dois acessos.

Marcos estava lá. No início do ano ele recusou a proposta milionária do Arsenal e ficou para encarar o então desconhecido inferno da segunda divisão. E jogou em quase todos os jogos, demonstrando a liderança de sempre e ao mesmo tempo se sentindo alegre como todos da torcida ao subir.

Nesse jogo em especial, ele fez uma defesa que jamais esquecerei. O Palmeiras abriu o placar com Baiano, o Ceará empatou na sequência e pressionou o Palmeiras, até que em uma jogada a queima roupa, Marcos fez uma daquelas defesas milagrosas que o consagrou na Libertadores de 99.

Ali eu tive a certeza plena que São Marcos estava fechado com o Palmeiras para sempre.

Palmeiras 3 x 2 Juventude – Brasileiro de 2005
Costumo dizer para todos que se não vencêssemos esse jogo, o Palmeiras não jogaria a Libertadores do ano seguinte e eu vos explico o porque.

Faltavam 4 rodadas para o final do campeonato, o Palmeiras estava em quinto lugar no campeonato e a distância de pontos em relação ao Fluminense, quarto colocado, ainda era considerável – 7 pontos. De fato, não eram muitos que ainda acreditavam em uma ida para a Libertadores do ano seguinte, pois naquela quarta do mês de novembro, pouco mais de 3000 pagantes estiveram presentes no Palestra Itália.

Em campo parecia fácil, o Palmeiras abriu 3 x 1 e criava chances a todo instante, sobretudo com Juninho Paulista, em fase espetacular. Porém, aos 43 minutos o atacante Josiel diminiu a contagem. 3 x 2 e ainda faltavam alguns minutos.

O gol tardio encheu o time gaúcho de brios e eles vieram para cima do Palmeiras com toda a força possível. Isso resultou em problema: Enilton, aos 46 do segundo tempo sofreu um pênalti de Alceu. Estava com meu pai no Palestra Itália nesse dia e minha espinha ficou gelada, tudo o que eu pensava era que ali estava o fim do remoto sonho da classificação para a Libertadores.

Porém, Enilton – que desembarcaria no Palmeiras meses depois – cobrou a penalidade e São Marcos defendeu. Naquele instante, ele não apenas salvou o Palmeiras de tomar um empate vergonhoso, ele renovou os sonhos de um ano seguinte mais digno em um período de estiagem.

No caminho para casa meu pai comentou comigo que o pênalti pego pelo Marcos ainda iria fazer a diferença no campeonato. Ele estava certo. O Fluminense perdeu pontos, o Palmeiras voltou para a briga e tudo se resolveu no confronto direto, na última rodada do Brasileiro de 2005 – ai a história foi diferente e o Palestra Itália, lotado, pulsou do jeito que conhecemos.

Embora todos se lembrem do confronto direto com o Fluminense como “o jogo da classificação para a Libertadores”, eu lembro que foi um pequeno milagre de São Marcos, imperceptível até, que nos classificou para a Libertadores de 2006.

Palmeiras 0 x 3 Guaratinguetá – Paulista de 2008
Perdemos de maneira contundente para um time minúsculo e São Marcos falhou nos gols. Jogo para esquecer, correto?

Não para mim. Esse jogo significa a volta por cima de São Marcos após anos de lesões que o vinham castigando.  Após o jogo ele assumiu as falhas, mas estava claro naquele dia que ele iria reassumir o lugar que estava guardado para ele, mesmo com Diego Cavallieri estando em fase esplendorosa.

Assemelho as falhas dele nesse jogo as de uma criança que tenta andar de bicicleta pela primeira vez e cai, mas que na sequência assume os pedais com maestria porque acreditou que conseguiria. Pois foi assim que Marcos voltou: caiu na primeira vez, mas acreditou que poderia voltar a realizar exibições de alto nível e fechou a meta alviverde como sempre na sequência do campeonato, sendo um dos esteios para o título paulista de 2008.

Palmeiras 5 x 0 Ponte Preta – Paulista de 2008
Durante o jogo derradeiro ele foi um mero espectador dentro de campo, mas foram as atitudes fora dele que me fizeram admirar ainda mais o homem Marcos Roberto Silveira Reis.

Na preleção, fez um dos discursos mais emocionante que ouvi no futebol ao dizer “me quebro tudo de novo se for preciso”. Ele, mais do que todos ali, queria o título – quis o destino que esse tenha sido o último troféu de uma carreira gloriosa.

Jogou, deixou Diego Cavallieri, que o substituiu com competência, participar da festa e ao sair de campo foi flagrado emocionado no banco de reservas, aguardando a partida terminar e levantar a taça derradeira.

O milagre desse dia não foi visto em uma defesa, mas na alegria de criança estampada na cara de um homem que já havia vencido todos os títulos possíveis e ainda assim comemorava como se fosse o primeiro. Esse título foi seu, São Marcos!

Palmeiras 0 x 0 São Paulo – Brasileiro de 2009
Novamente, o inimigo estava do outro lado. O Brasileiro ainda estava nas primeiras rodadas e o Palmeiras permanecia vivo na Libertadores simultaneamente.

Os presentes no Palestra Itália viram uma das maiores exibições do santo goleiro, já beirando os 36 anos de idade. Se por um lado a arbitragem nos garfou com uma precisão cirúrgica, do outro, as vistosas defesas de Marcos em chutes de extremo perigo foram daquelas para se lembrar para sempre. Não garantiu a vitória – muito graças ao juiz – mas foi uma partida memorável de um goleiro se aproximando da reta final de sua vitoriosa carreira.

Palmeiras 1 x 0 e 0 x 1 CAG – Copa do Brasil de 2010
Sabe aquela sensação de que não dá para fazer tudo sozinho? Marcos sentiu isso nesse dia. O elenco do primeiro semestre do ano de 2010 estava no ápice de seu desgaste técnico e emocional, além de ficar claríssimo que não havia comando – AC Zago foi um gigantesco erro.

Em campo, um time apático que foi incapaz de agredir o minúsculo Atlético-GO no Serra Dourada. Sequer teve competência para administrar a vantagem adquirida no jogo da ida, partida em que teve Marcos como um dos destaques.

Ir para os pênaltis foi lucro naquela noite. Mas se a postura dos batedores era de desinteresse puro, São Marcos lutou sozinho naquela noite. Defendeu 3 penaltis e provavelmente seria lembrado por mais um milagre se não fosse sabotado pela incompetência gigantesca de seus então companheiros.

Um dia de herói solitário, de um médico que fez todos os esforços possíveis mas que não conseguiu salvar seu paciente de um coma. A única salvaguarda em meio à apatia geral daquele dia.

Palmeiras 5 x 0 Avaí – Brasileiro de 2011
O ano de 2011 foi o canto do cisne de uma carreira vitoriosa. Ele merecia muito mais do que os companheiros que teve a disposição naquele ano, mas mesmo aos 38 anos e com lesões que o castigava, ele se esforçava ao máximo para terminar a carreira da maneira mais vitoriosa possível.

Esse jogo, disputado no Canindé, foi o melhor do Palmeiras na temporada. A vitória veio com tanta facilidade que terminamos o primeiro tempo vencendo por 4 x 0. Na segunda etapa, tivemos um pênalti a nosso favor e o estádio inteiro fez coro (me incluindo) para que ele fosse cobrar a penalidade. Até o Judas30 voltou para busca-lo, mas o santo goleiro rechaçou a ideia.

No calor do momento lamentamos, mas se pararmos para refletir o que aconteceu, todos concordamos que foi uma atitude de homem, extremamente respeitosa. São Marcos não usou a larga vantagem construída para tripudiar um adversário, ainda mais quando ainda era metade do segundo tempo. A imagem dele se recusando a partir para o ataque ficará para sempre da minha memória.

Palmeiras 2 x 1 Corinthians – Brasileiro de 2011
O último dérbi do São Marcos e último suspiro enquanto aspirávamos o título no Brasileiro de 2011, ainda no último jogo do primeiro turno. As dores no corpo eram tantas que ele não aguentou por muito tempo depois disso, mas ele teve participação fundamental nessa vitória.

Após sairmos atrás no placar, viramos a partida no início do segundo tempo, os rivais esboçaram uma reação e levaram perigo algumas vezes enquanto estávamos em vantagem. Em uma delas, São Marcos fez uma defesa espetacular em um chute de Liedson que foi determinante para a vitória.

Uma última vez dentre muitas que nosso santo goleiro fechou o gol contra nosso maior rival.

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Esse foi São Marcos, um homem capaz de realizar grandes feitos e pequenos milagres que eram suficientes para alegrar o dia de um palestrino. Melhor ainda: de representar por 20 anos o que é ser um palmeirense estando dentro de campo, foi a personificação do trecho “tem que jogar com a alma e o coração” que tanto cantamos na arquibancada. Além, claro, de representar a essência de um ser humano como todos nós, pois toda vez que o olhávamos protegendo as traves, nos lembrávamos de nossos pequenos milagres cotidianos que construímos com sangue, suor e lágrimas. Ele foi cada ser humano que o viu jogar.

Obrigado por tudo Marcos Roberto Silveira Reis.

São Marcos do Palestra Itália.


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